O que foi a “Primavera Árabe”? Revoltas populares no Norte da África e na Região do Levante e Península Arábica

26.08.2025

Você sabe o que foi a chamada Primavera Árabe? Esse termo, frequentemente usado pela mídia ocidental, descreve uma onda de protestos e levantes populares que começaram em 2010 e se espalharam por vários países do Norte da África e do Oriente Médio.

Mas para além do nome — que remete a referências europeias, como a “Primavera dos Povos” de 1848 — é importante compreender esses acontecimentos a partir das próprias realidades e vozes locais, reconhecendo a luta de milhões de pessoas contra regimes autoritários, a desigualdade social e a exclusão política.

O início na Tunísia

Um marco inicial foi a história de Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante de frutas na Tunísia. Após ter seus pertences confiscados pela polícia local, quando já enfrentava anos de precariedade e falta de oportunidades, Bouazizi ateou fogo em si mesmo em frente a um prédio do governo no dia 17 de dezembro de 2010. Seu ato extremo se transformou em um símbolo de resistência contra a situação precária marcada pelo desemprego e pela repressão.

O contexto tunisiano era de crise econômica prolongada, altas taxas de desemprego — especialmente entre jovens formados — e um regime autoritário liderado por Ben Ali. A mobilização popular cresceu rapidamente, com forte participação de jovens e trabalhadores, e culminou na renúncia de Ben Ali em janeiro de 2011.

A propagação dos protestos

A queda do regime na Tunísia rapidamente inspirou movimentos semelhantes em outros países, revelando que as condições de exclusão e autoritarismo não eram exceção, mas parte de uma realidade compartilhada por milhões de pessoas na região.

  • Egito: mobilizações massivas, especialmente na Praça Tahrir, levaram à saída de Hosni Mubarak após quase 30 anos no poder.
  • Líbia: protestos contra Muammar Gaddafi evoluíram para uma guerra civil, marcada pela intervenção militar da OTAN. Nas análises externas, esse episódio muitas vezes é descrito apenas como “caos” ou “colapso do Estado”. Mas essa narrativa simplificada acaba inviabilizando as dinâmicas internas e regionais — como as disputas entre diferentes grupos líbios e a influência de países vizinhos —, que são fundamentais para compreender o que de fato aconteceu no país.
  • Síria: manifestações contra Bashar al-Assad foram respondidas com forte repressão, e o país mergulhou em uma guerra civil com intervenção de outros países e forças internacionais prolongada e devastadora.
  • Iêmen: a saída de Ali Abdullah Saleh não trouxe estabilidade, e o país vive até hoje uma guerra com múltiplos atores internos e externos.
  • Bahrein: protestos liderados majoritariamente pela população xiita foram reprimidos com apoio militar de países vizinhos, como a Arábia Saudita.
  • Argélia, Marrocos, Omã e Sudão: em cada país, as demandas variaram de reformas sociais a mudanças de regime, com resultados distintos, mas todos conectados ao desejo de mais dignidade, participação política e justiça social.

Entre esperanças e desafios

Embora muitos dos protestos tenham resultado em repressão ou em guerras prolongadas, a Primavera Árabe não pode ser reduzida a um “fracasso”, como muitas análises ocidentais costumam afirmar. O que se expressou ali foi a agência política e a criatividade popular de milhões de pessoas que, enfrentando condições adversas, ousaram questionar estruturas enraizadas de poder.

Além disso, os efeitos desses levantes continuam reverberando até hoje, seja em novas ondas de protesto (como no Sudão em 2018), seja na forma como as sociedades árabes refletem sobre seus caminhos de transformação.

Os resultados: entre conquistas, retrocessos e resistências

Os resultados da chamada Primavera Árabe não podem ser resumidos de forma linear. Embora a esperança inicial tenha encontrado barreiras duras — governos autoritários, repressão militar, guerras prolongadas e forte intervenção internacional —, os levantes deixaram marcas profundas na história política e social da região.

A Tunísia é muitas vezes citada como o caso de “sucesso” da Primavera Árabe, com uma nova constituição e eleições livres. No entanto, é importante problematizar o que significa esse “sucesso”. A democracia liberal representativa — geralmente usada como medida pelos olhares do Norte global — é tratada como um padrão universal, mas não necessariamente responde às necessidades ou aspirações de todas as sociedades.

Mesmo com avanços institucionais, a população tunisiana continuou enfrentando desigualdades sociais, regionais e econômicas profundas. Além disso, muitas estruturas de poder pouco se transformaram. O que foi considerado um “exemplo democrático” para fora do país não necessariamente refletia uma experiência de maior justiça e dignidade para todos dentro dele.

Assim, a Primavera Árabe na Tunísia também nos convida a questionar: será que a democracia, como entendida no Ocidente, é o único ou o melhor modelo político possível? Ou será que precisamos reconhecer e valorizar outras formas de participação, organização comunitária e caminhos de transformação pensados a partir de contextos mais localizados e populares?

No Egito, a queda de Hosni Mubarak em 2011 não garantiu estabilidade democrática: após uma breve abertura, o país voltou a viver sob um regime autoritário após 2013, evidenciando como as estruturas de poder podem se rearticular.

Na Líbia, Síria e Iêmen, os protestos se transformaram em guerras prolongadas, alimentadas por interesses locais, regionais e internacionais. Essas narrativas, muitas vezes reduzidas na cobertura externa ao “caos”, precisam também ser vistas como expressões da resistência contínua de populações que ainda lutam por dignidade em meio a cenários violentos e desumanizantes.

No Bahrein, as mobilizações lideradas pela maioria xiita contra o governo sunita foram fortemente reprimidas, com apoio de países vizinhos como a Arábia Saudita — revelando como as dinâmicas regionais moldaram os resultados.

Na Argélia, embora os protestos de 2011 não tenham derrubado o governo, eles abriram caminho para uma crescente insatisfação popular que culminou em 2019 na renúncia de Abdelaziz Bouteflika.

Em Marrocos e Omã, as manifestações resultaram em reformas limitadas. No caso marroquino, o rei Mohammed VI anunciou mudanças constitucionais, mas que não alteraram de forma estrutural o poder monárquico.

A leitura dos resultados depende da perspectiva: para análises hegemônicas, a Primavera Árabe é vista como uma promessa “fracassada”. Mas para quem olha desde dentro, do Sul global, o processo é mais amplo: ele revelou o potencial transformador das mobilizações populares, expôs as contradições das estruturas de poder e segue inspirando novas formas de resistência e luta por dignidade em diferentes partes destas regiões.

Os refugiados e a conexão com o Brasil

A Primavera Árabe também teve consequências profundas no campo humanitário. Os conflitos, a repressão e a instabilidade política intensificaram o fluxo migratório em várias partes do mundo — inclusive no Brasil.

Segundo dados da Agência Brasil, em 2012 o país havia recebido apenas 50 refugiados sírios. Dois anos depois, esse número saltou para 1.739. Entre os libaneses, o crescimento proporcional foi ainda mais expressivo: 1.255% entre 2011 e 2014. Esses números refletem não apenas a gravidade das guerras e repressões, mas também o impacto direto desses processos globais em nossa realidade local.

Nesse cenário, a Abraço Cultural desempenha um papel fundamental na acolhida de refugiados no Brasil. Nossos cursos de árabe, francês, inglês e espanhol — ministrados por professores refugiados — não apenas oferecem aprendizado linguístico, mas também promovem o intercâmbio cultural, a valorização da diversidade e a geração de renda para pessoas em situação de refúgio.

Ao compreender a Primavera Árabe, entendemos não só os movimentos de protesto que transformaram o Norte da África e o Oriente Médio, mas também as consequências humanas que atravessaram fronteiras. E é nesse ponto que o trabalho da Abraço Cultural se insere: construir pontes de diálogo, aprendizado e reconhecimento, onde histórias de resistência e esperança continuam sendo contadas — agora também em terras brasileiras.


Gostou do conteúdo? Confira nosso blog e siga a Abraço Cultural nas redes sociais!

Conteúdo relacionado